Lembro-me de quando ainda era criança.
Viajei para um sítio no interior com a
família de um amigo. O lugar era um pouco isolado e toda noite íamos pra fora
fazer uma fogueira, ver as estrelas no céu aberto e contar histórias.
Em uma dessas noites, começaram as histórias de terror. Um dos tios do
meu amigo era especialista. Fazia tudo parecer real, tamanha a riqueza de
detalhes. Subia e descia o tom de voz e fazia pequenas pausas, tudo para nos
fazer mergulhar em seus relatos.
Eu ficava apavorado.
Numa certa hora da noite, veio o causo que mais me marcou, de um jovem que
posicionava a cama com os pés virados pra janela, fazendo atrair espíritos ruins. Ele afirmava conhecer
pessoalmente o menino, recheando o conto minuciosamente e eu, mais do que
assustado, querendo fugir para não ouvir, ficava preso pela curiosidade
característica de uma criança.
Hoje me pergunto da onde vinha tanta criatividade, compreendo que ele
não estava falando sério e não acredito nesse tipo de coisa, não faz sentido
lógico pra mim.
Porém, ainda assim, quase 20 anos depois, às vezes me pego sentindo
certo receio e desconforto quando tenho que deitar em uma cama com os pés virados pra janela.
Internalizei aquela história em um nível emocional.
E com o preconceito a coisa não é muito diferente.
Segundo o psiquiatra Dr. Vamik, o preconceito
é um aprendizado emocional que
ocorre e se enraíza na infância.
Depois, na fase adulta, é fácil, numa pegada racional, entender que se trata de algo abominável. Ninguém
quer ser lembrado como alguém
preconceituoso. Assim como eu não quero ser lembrado como alguém que
carrega superstições de histórias de terror infantis.
Ser – como se fosse um traço de personalidade – preconceituoso é algo
que todos afastam ao máximo de si. Ninguém se acha reprodutor de tais condutas.
Ninguém logicamente quer
reproduzi-las. E ninguém se definiria assim.
Ora, mas se todos sabem que é errado e ninguém quer reproduzir, por que,
então, o preconceito continua vivo, atravessando gerações e causando tantos
problemas?
Porque preconceito é sentir.
Um sentimento de aversão desenvolvido, na maioria das vezes, quando o cérebro
nem sequer estava pronto. Um sentimento extremamente
difícil de ser quebrado.
Ainda mais difícil quando não estamos conscientes que ele se faz
presente em nós.
Ninguém quer ser
preconceituoso, mas todo mundo o é.
A verdade é que categorizar as coisas é a forma como cérebro trabalha e
fazer isso, através das emoções, foi e ainda é fundamental para a sobrevivência
e perpetuação da nossa espécie. Foi categorizando que, ao perceber a diferença
de uma corda e uma cobra, colocamos a primeira na categoria “ferramenta”
e a segunda na categoria “perigo”, tendo assim respostas
rápidas e efetivas ao se deparar com uma delas.
Entendemos que essa categorização no âmbito social, contra seres
humanos, é um erro. Mas entender não é suficiente, o aprendizado emocional continua lá e para ele nós racionalizamos desculpas.
Racionalizar é buscar justificativa
lógica para sentimentos e emoções e, assim, se manter confortável com a
parte pensante do cérebro, evitando um possível – e necessário – autoconfronto.
É por isso que muitas pessoas, mesmo sem perceber, agem de maneira sutilmente
preconceituosa. Como quando, em uma entrevista, por exemplo, um chefe desqualifica
uma mulher por seu currículo, mas contrata um homem com o mesmo grau de experiência.
Se perguntado, ele dirá que isso não diz
respeito a nenhum tipo de preconceito, uma vez que ele é radicalmente contra uma postura sexista.
Nesse caso, ele estaria embasado e seguro em uma racionalização baseada
em níveis de experiência profissional, sem perceber que carrega um aprendizado
emocional – que é falso – de que as mulheres são seres mais frágeis e talvez
não dariam conta do trabalho.
Assim, com justificativas e justificativas, o ego fica intacto para agir
livremente e o preconceito nebuloso permanece causando muitos
prejuízos.
Ser desconstruídão para se sentir virtuoso é autoengano e só atrapalha
É preciso que sejamos inteligentes em cortar o mal pela raiz, com
assertividade e paciência. Sabendo que o que foi construído leva tempo para
se desconstruir.
Quando você se depara com uma atitude discriminatória, se enfurece e
ataca o caráter do outro, você, então, está se inundando de um sentimento muito semelhante ao dele, porém com,
provavelmente, maior intensidade.
Do tipo:
Você é nojento.
Tenho nojo de você.
Tenho nojo de gente
preconceituosa.
A aversão criada é basicamente a mesma. Porém agora com um respaldo racional que te permite se sentir justo com tal emoção. O outro que é o sem caráter e não eu.
Isso, além de ser ineficaz, é uma massagem ao próprio ego. Significa atacar
o ego de alguém para se sentir massageado como alguém combativo e cheio de
virtudes.
O resultado disso é colocar o outro inevitavelmente na defensiva, ativando os alertas emocionais de perigo mais primitivos e colocando a pessoa na chamada posição de “lutar-ou-fugir”. Ela vai negar ou devolver a acusação num processo desgastante e gerador de altas doses de ressentimento.
Ora mas isso foi só
uma brincadeira, quanto moralismo! Seria a resposta no cenário mais
ameno possível.
Pode ser que, dessa maneira, você a silencie num primeiro momento, no entanto nenhuma sementinha de reflexão
será plantada, ao contrário, o sentimento de segregação estará vivo e reforçado
e o terreno ainda mais infértil as mudanças: um ego ameaçado jamais considera o que vem daquele que o fere.
Assim, no longo prazo, a crítica violenta é contraproducente. O que era
pra ser desconstruído agora é silenciado e reforçado. Está sempre a espreita,
esperando a oportunidade de se colocar de maneira velada – nas microagressões do
dia-a-dia.
Vivemos um recente período de intolerância
aos intolerantes, em que o preconceito foi enfrentado de maneira veemente,
mas pouco eficaz. Muitos ataques desmoralizantes, pessoais e que partem de
pessoas que não são invulneráveis. Afinal, quem tem plena
consciência de todos os sentimentos marcados na mais tenra idade, podendo garantir uma vivência livre de preconceito?
O resultado? Rejeição em larga escala a todo esse enfrentamento, uma
espécie de contrarreforma que traz
distorções bizarras. Hoje, quem se coloca disposto a defender minorias que
sofrem com a discriminação, recebe a bandeira de ser “politicamente correto” e precisa carregar também o seu peso
negativo.
O que só fortalece uma polarização - já muito grave - entre os “corretinhos, moralistas e hipócritas”
contra os “preconceituosos, nojentos e
ignorantes”.
Um maniqueísmo lamentável.
A saída
não é fácil, mas está na empatia.
Falar de preconceito é muito delicado. Nesse momento, me exponho em um
campo no qual os ânimos estão sempre exaltados e é compreensível que assim o
seja. Não estou aqui para avaliar o seu comportamento, mas sim para
oferecer um caminho diferente a quem se identifique e se sente disposto a
percorrê-lo.
Se esse não é o seu caso, entendo perfeitamente. Só você sabe do quepassou e do que viveu. Só você sabe as dores que já sentiu e as alternativas
que mais fazem sentido na sua experiência.
Não é o meu objetivo te entregar uma fórmula mágica, não seria
irresponsável a esse ponto. Mas sim de entregar uma opção diferente às reações
já naturalizadas por nós. Uma opção que pode funcionar dentro das suas
vivências ou não. Uma opção que, adaptada a sua realidade, pode se tornar
congruente ao seu modo de ser e de agir.
Uma opção muito difícil e que se for completamente distante e
impossível pra você, eu entendo, respeito e me coloco disponível para
conversamos. Acredito nas suas experiências e imagino que elas tenham sido duras.
O que proponho é algo que precisamos, enquanto sociedade, fortalecer com
urgência: empatia. Separo em duas partes:
1) Trabalhando a minha própria empatia
Como dissemos aqui, empatia
não é qualidade de pessoas boazinhas, não é caridade, não é sentimento e,
principalmente, não é “fazer com o outro o que gostaria que se fizesse a mim”.
Empatia é a habilidade de se
colocar no lugar do outro, como se fosse o outro.
Uma habilidade humana, natural e autêntica de se criar conexão.
Empatia não é compaixão. A compaixão pode vir como consequência, mas
isso não é regra. O que significa que buscar compreensão empática por um
agressor não significa amá-lo, abraçá-lo, concordar com ele ou levá-lo pra casa.
Na realidade, buscar empatia é buscar maior entendimento, adicionar mais
variáveis a equação e assim ser capaz de uma resposta mais refinada, ainda que
firme.
• O Exercício diário de se autoquestionar
Se quero transformação, então que comece comigo. É preciso
questionar-se, num primeiro momento, os próprios preconceitos. Julgar e
categorizar é inevitável, como dissemos. Mas o que fazemos com julgamento
depois é escolha. Desconstruí-lo ou
racionalizá-lo?
- Sinto-me combativo contra as injustiças do mundo, mas consigo olhar pra
dentro?
- De que maneira reforço o status-quo?
- Talvez eu carregue algum tipo de aprendizado emocional contra grupos dominantes
e privilegiados?
- Isso resulta em desumanização
e me afasta deles?
Sem acessá-los, não consigo partilhar experiências e
promover construção mútua, a interação só se dá por confronto.
Devo também questionar meu ego:
- O que eu quero?
- Mudar alguma
coisa ou apenas sentir que estou ajudando a promover mudanças?
- Quero me sentir
virtuoso e só?
- Talvez queira me sentir parte de um grupo que considero mais
sábio, mais interessante, mais atraente?
- Ou talvez quero me sentir distante de
um grupo que considero burro, estúpido ou de má-fé?
- Será que é tudo por querer
desenhar uma identidade?
- Ou é vontade real de transformação? Sendo vontade
real de transformação, que tipo de resultados estou conseguindo?
O questionamento diário traz autoconhecimento e domínio de si próprio, abrindo passagem para empatia, maturidade emocional e frieza para a melhor ação.
2) Promovendo empatia ao mundo
Uma pessoa que demonstra preconceito é uma pessoa que também está em um
processo único de transformação. No seu próprio tempo, dentro da sua própria
história, à sua própria maneira. Reconhecer nossas mazelas nos faz perceber que
estamos todos caminhando e que esse problema não é questão de virtude x não-virtude. É cultura, herança, aprendizado e desconstrução.
Ao
presenciar discriminação, é preciso ser objetivo. Substituir a violência contra
a pessoa, o seu ego e caráter, pela refutação de sua atitude ou ideia. Precisamos
parar de vestir o outro em características imutáveis, ora, se tudo o que ele
representa é repugnante e inexorável, então não há nada o que se possa fazer.
Evitar
a violência não significa apatia. Entre o preto e o branco há tons de cinza.
Precisamos, sim, de força, energia e autoridade. Não para reduzir alguém, mas
para denunciar o preconceito.
É
importante denunciar a atitude, inibi-la e tomar todas as medidas cabíveis.
Isso não apaga o sentimento, mas reduz a sua manifestação e os eventuais
estragos que ela causa.
• No entanto, para efetivamente mudarmos, é preciso promover empatia.
Estudos
mostram que a reincidência de crimes violentos contra a mulher cai por mais da
metade quando os agressores passam por tratamento no qual são colocados no
papel das vítimas e são estimulados a pensar em como elas se sentem. No Brasil,
já existe uma MP que apresenta esse solução para a lei Maria da Penha.
Alguns países na Europa e Oriente Médio são pequenos e multiculturais. Lá, cientistas já perceberam que quando a educação promove empatia entre grupos étnicos/religiosos, através de diálogo e trabalho em equipe, a segregação desaparece. O problema é que na maioria das vezes acontece o contrário: uma educação nacionalista facilitadora da desumanização do outro.
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É
fundamental que estimulemos empatia, não para evitar reincidência, mas para
eliminar a ocorrência. Rodas de conversa, palestras, grupos de estudo,
depoimentos, vídeos, documentários, conversas, fala, escuta, estudos, apoio profissional,
enfim... Você pode contribuir com uma experiência mais rica para aquele que
está do seu lado e está precisando dela.
Se
já superou essas barreiras, então abandone o ego e estenda a mão para o que alguém
mais o faça. Não precisamos falar de cima pra baixo. A sensação de superioridade é
temporária e cega e quando a gente a abandona, estamos ajudando, antes de tudo, a nós mesmos.
Grande
abraço!
Muito obrigada, gosto sempre de ter acesso a mais informação; estudei Carl Rogers (empatia) na faculdade... e é algo muito relevante para mim, uma vez que eu desconhecia essa designação para algo que está comigo deste sempre; daí a importância para mim, de empatia e também porque as pessoas confundem muito com afinidade, pelo menos, aqui em Portugal, usam a palavra para designar algo como afinidade. bjs violetas!
ResponderExcluirAqui no Brasil também confundem e romantizam muito, é importante que estejamos atentos a isso sempre, não é?!
ExcluirObrigado pelo partilhar e fique a vontade para contribuir sempre que quiser!
Grande abraço!