do livro "Um Jeito de Ser"...
A prática, a teoria e a pesquisa
deixam claro que a abordagem centrada no cliente baseia-se na confiança em
todos os seres humanos e em todos os organismos. Há provas advindas de outras
disciplinas que autorizam uma afirmação ainda mais ampla. Podemos dizer que em
cada organismo, não
importa em que
nível, há um
fluxo subjacente de
movimento em direção à realização
construtiva das possibilidades que lhe são inerentes. Há também nos seres humanos
uma tendência natural
a um desenvolvimento mais
completo e mais complexo. A expressão mais usada para
designar esse processo é “tendência realizadora”, presente em todos os
organismos vivos.
Quer falemos de uma flor ou de um
carvalho, de uma minhoca ou de um belo pássaro, de uma maçã ou de uma pessoa, creio que estaremos
certos ao reconhecermos que a vida é um processo ativo, e não passivo. Pouco
importa que o estímulo venha de dentro ou de fora, pouco importa
que o ambiente seja
favorável ou desfavorável.
Em qualquer uma
dessas condições, os comportamentos de um organismo estarão voltados para
a sua manutenção, seu crescimento e sua reprodução. Essa é a própria natureza
do processo a que chamamos vida. Esta tendência está em ação em todas as ocasiões.
Na verdade, somente a presença ou ausência desse processo direcional total
permite-nos dizer se um dado organismo está vivo ou morto.
A tendência realizadora pode,
evidentemente, ser frustrada ou desvirtuada, mas não pode ser destruída
sem que se
destrua também o
organismo.
Lembro-me de
um episódio da minha
meninice, que ilustra
essa tendência. A
caixa em que
armazenávamos nosso
suprimento de batatas
para o inverno
era guardada no
porão, vários pés
abaixo de uma pequena janela. As condições
eram desfavoráveis, mas as batatas começavam a germinar — eram brotos pálidos e
brancos, tão diferentes dos rebentos verdes e sadios que as batatas
produziam quando plantadas
na terra, durante
a primavera. Mas
esses brotos tristes
e esguios cresceram dois ou três pés em busca da luz distante da janela.
Em seu crescimento bizarro e vão, esses brotos eram uma expressão desesperada
da tendência direcional de que estou
falando. Nunca seriam
plantas, nunca amadureceriam, nunca
realizariam seu verdadeiro
potencial. Mas sob as mais adversas circunstâncias, estavam tentando ser uma
planta.
A vida não entregaria os pontos,
mesmo que não pudesse florescer. Ao lidar com clientes cujas vidas
foram terrivelmente desvirtuadas,
ao trabalhar com
homens e mulheres
nas salas de fundo
dos hospitais do
Estado, sempre penso
nesses brotos de
batatas. As condições em que se
desenvolveram essas pessoas
têm sido tão
desfavoráveis que suas vidas quase sempre parecem anormais,
distorcidas, pouco humanas. E, no entanto, pode-se confiar que a tendência
realizadora está presente nessas pessoas. A chave para entender seu
comportamento é a luta em que se empenham para crescer e ser, utilizando-se dos
recursos que acreditam ser os disponíveis. Para as pessoas saudáveis, os
resultados podem parecer bizarros e inúteis, mas são uma tentativa desesperada
da vida para existir. Esta tendência construtiva e poderosa é o alicerce da
abordagem centrada na pessoa.
As células do ouriço marinho
Não sou o único a ver na tendência
à auto-realização a resposta fundamental à questão do que faz um organismo
“pulsar”. Goldstein (1974), Maslow (1954), Angyal (1941, 1965), Szent-Gyoergyi (1974),
entre outros, defenderam
concepções semelhantes e
exerceram influências sobre meu modo de pensar. Em 1963, ressaltei que
esta tendência implica num desenvolvimento
em direção à diferenciação dos
órgãos e das
funções; implica em crescimento através da reprodução.
Szent-Gyoergyi afirma não poder explicar os mistérios do desenvolvimento biológico
“sem supor um impulso‟
natural, na matéria
viva, em direção
ao aperfeiçoamento” (p.
17). O organismo,
em seu estado
normal, busca a sua própria realização, a auto-regulação e a
independência do controle externo. Mas
será que esta concepção é confirmada por outros tipos de dados? Dispomos de
alguns trabalhos, na Biologia, que fundamentam o conceito de tendência auto-realizadora.
Hans Driesch realizou, há
muitos anos atrás,
um experimento, replicado
com outras espécies, tendo como sujeitos ouriços do mar.
Driesch separou as duas células que se formam após a primeira divisão do ovo
fertilizado. Se tivessem se desenvolvido normalmente, é claro que cada uma
delas teria se
transformado em uma
parte do ouriço, sendo
que ambas seriam necessárias à formação da criatura
inteira. Portanto, parece igualmente óbvio que quando as duas células
são cuidadosamente separadas
e conseguem crescer,
cada uma delas responderá apenas pela parte do ouriço
que lhe cabe. Mas esta suposição
desconsidera a tendência direcional e
autorealizadora,
característica de todo
crescimento orgânico.
Segundo o resultado
encontrado, cada célula, conservada viva, se transforma em uma larva de ouriço
do mar, inteira — um pouco menor do que o comum, mas normal e completa.
Escolhi este exemplo porque se
assemelha muito à minha experiência com indivíduos em relações de
terapia individual, na
facilitação de grupos
intensivos, na promoção
da “liberdade para aprender”
junto a alunos,
nas salas de
aula. Nessas situações,
fico impressionado com a
tendência que todo
ser humano exibe
em direção à
totalidade, em direção à
realização de suas potencialidades. A psicoterapia ou a experiência grupal não surtiram efeitos quando tentei criar no
indivíduo algo que ainda não estava lá; no entanto, descobri que se criar as
condições que permitem o crescimento, essa tendência direcional positiva leva a
resultados positivos. Aquele cientista, diante do ouriço dividido, estava na
mesma situação. Ele não podia determinar que a célula se desenvolvesse nessa ou
naquela direção, mas quando se concentrou na tarefa de criar as condições para
sua sobrevivência e seu crescimento, a tendência ao crescimento e a direção do
crescimento, provenientes do interior
do organismo, tornaram-se
evidentes. Não consigo
imaginar uma analogia
mais adequada para as
situações de terapia
e de grupo.
Quando consigo criar
um fluido amniótico psicológico
surge movimento para a frente, de natureza construtiva.
(...)
Sabe-se hoje que o “código genético” não contém todas as informações necessárias à especificação das características
do organismo maduro. Ao invés disso, contém um conjunto de regras que determinam
as interações entre as células em
divisão. A quantidade de informações necessárias à codificação das regras é muito menor do que a que se faz necessária à orientação de
cada aspecto do desenvolvimento maturacional. “Assim, a informação pode ser
gerada dentro do sistema organísmico — a informação pode crescer.” (Pentony, p.
9, grifo meu.) Daí se conclui que as células de ouriço marinho trabalhadas por
Driesch estão, sem dúvida, seguindo as regras codificadas e, consequentemente, estão
aptas a se desenvolverem de modo original, sem uma especificação prévia ou
rígida.
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